29 de janeiro de 2011

Solfejo


O solfejo é uma ferramenta eficaz e muito importante para o desenvolvimento do repertório pelos coros, dando velocidade ao aprendizado e maior desenvoltura em partituras complexas. Embora essa ferramenta faça parte da musicalização básica para o estudo e prática de qualquer instrumento, principalmente do canto, não é utilizada nem valorizada pelos coros amadores no Brasil, salvo poucas exceções. Há uma estreita ligação entre a falta de prática de solfejo com a queda no nível de complexidade, de quantidade e qualidade do repertório realizado atualmente, colaborando também para a extinção do repertório erudito nos palcos brasileiros, que já é raridade nos encontros e festivais de coros.
No Rio Grande do Sul não há nenhum coro estável que tenha a habilidade de realizar uma partitura simples à primeira vista, nem mesmo coros de universidades. Nas universidades em que se tem curso superior de música, às vezes se formam grupos entre alunos ou de disciplinas específicas em que é possível realizar alguma leitura à primeira vista, mas mesmo assim, as tentativas frequentemente são frustradas pela habilidade insuficiente de solfejo.  Essa situação é comum por todo o país, embora existam mais exceções à regra em Estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Nestes, coincidentemente, existem coros profissionais, que são referência em qualidade e complexidade de repertório. Nos coros de Meninos Cantores o solfejo também já não é comum, como era há cerca de 30 anos atrás, quando todos solfejavam diariamente em seus ensaios, e isso fazia parte da rotina, hoje já um pouco modificada.
Um coro que não solfeja está fadado a aprender de ouvido e restringir o repertório a peças fáceis ou de média dificuldade. O aprendizado é vagaroso. Em algumas situações, com muito esforço, pode se memorizar peças mais complexas, mas sempre com muita repetição e paciência. A quantidade de repertório obviamente fica reduzida, se comparada ao mesmo coro supondo que este conseguisse solfejar a primeira vista. Ou seja, se um coro realiza cerca de 15 músicas por ano, podemos imaginar que este mesmo coro, se solfejasse bem, pudesse realizar mais de cinquenta peças com a mesma dificuldade e no mesmo período de tempo. Um coro que não solfeja exige também muito mais esforço e paciência por parte do regente, uma vez que este terá que passar a música aos cantores por meio da repetição, às vezes exaustiva, e considerar que o coro não tomará nenhuma iniciativa consciente na resolução de problemas musicais, como corrigir notas e dinâmica automaticamente, sem que o regente precise intervir, por exemplo. Pode também, tomar tempo do regente com outros artifícios para contornar a lentidão do aprendizado, como a gravação de faixas de áudio por naipe de cada música, para que os cantores escutem e imitem as gravações, fazendo com que eles dediquem tempo para esta tarefa fora dos ensaios.
Muito tempo pode ser gasto com o aprendizado da linha melódica e da correção das notas, ritmos e dinâmicas. Frequentemente se despende tempo excessivo corrigindo notas ou detalhes que poderiam ser espontaneamente resolvidos com bom solfejo, quando não obstante, se desiste de corrigi-los por ter de escolher entre colocar a música de pé para ser apresentada em detrimento de fazê-la com todas as notas no lugar e ainda correr o risco de que não fique pronta no prazo. Esse precioso tempo poderia estar sendo aplicado com o desenvolvimento da sonoridade, da interpretação da partitura, no desenvolvimento de mais repertório, no investimento em um repertório mais rebuscado, ou no desenvolvimento das habilidades do coro.
A música coral erudita está sendo aos poucos esquecida pelos coros amadores brasileiros, sem que seus regentes sequer tenham alguma preocupação para com o assunto. São cerca de 1.000 anos de história em composições corais no ocidente que estão deixando de fazer parte do repertório de nossos coros, e esse fenômeno acontece pela primeira vez agora, no final do segundo milênio. Dentre todos os motivos que possam ter levado a esta situação singular, podemos afirmar com segurança que a falta de conhecimento musical contribuiu diretamente no processo. Afinal, conhecer música é imprescindível para realizar boa parte das composições já escritas. Sem nos atermos ao que levou a esse resultado no Brasil, logo podemos presumir que com uma boa base de solfejo, aos poucos, naturalmente se equilibrará o repertório novamente, dando mais espaço ao estudo da música escrita pelos consagrados compositores, visto que o estudo do solfejo normalmente não vem sozinho, mas acompanhado de história, teoria e percepção. A música de concerto pode ser usada como ferramenta para estruturar o coro, porque compreende uma gama inumerável de elementos e complexidades, que se aplicados com consciência na construção do repertório certamente levarão a um crescimento constante de qualidade. São composições dos mais variados níveis de dificuldade, estilos, sonoridades e tipos de escrita.  Mas infelizmente, sem solfejar bem, boa parte deste repertório fica praticamente  impossível de ser realizado.
O solfejo em coro, entretanto, não é elemento fácil de se incluir na rotina repentinamente, onde não se tem este hábito. Problemas podem ser enfrentados de imediato, como a falta de interesse por parte dos cantores, resistência nos primeiros meses, diferença de níveis dos cantores, diferença de propósitos e anseios, agenda que não reserve tempo para esta tarefa, ou até mesmo a falta de exigência do repertório. A organização se fará necessária, e uma boa argumentação por parte do regente também. Para um grupo que ensaia duas horas por semana, por exemplo, pode se começar com quinze ou trinta minutos no início de cada ensaio. Depois de que o grupo desenvolver o suficiente com exercícios, faz-se necessária a aplicação direta no repertório, para entrelaçar as coisas o quanto antes. Para os que apresentam maiores dificuldades, atendimentos individuais vão ajudar. Depois de um ano, quando o grupo já estiver um pouco desenvolvido, requer atenção especial aos novos componentes, que entrarão em desnível e precisarão de atendimento especial. Neste ponto da trajetória, certamente o coro já será outro!
É comum os coros atingirem um determinado nível, desde sua fundação ou desde que assumiu o regente atual, e por diante ficar sempre no mesmo nível, às vezes por dezenas de anos. Basta analisarmos cuidadosamente a história dos coros que conhecemos para diagnosticar isso. O solfejo e o estudo musical de forma estruturada sempre possibilitará que o coro adquira mais qualidade, que experimente fazer uma quantidade maior de repertório, que experimente realizar peças mais difíceis ou audaciosas, enfim, deixa em aberto a possibilidade de crescer.  
            Seja ele tradicional, em dó móvel, por relação intervalar, por graus ou qualquer outra forma, o desenvolvimento do solfejo só ajuda, facilita o aprendizado. Não podemos deixá-lo no esquecimento. Em 2009 um colega regente, depois de ter experiência com coros que tem o hábito de solfejar, em outro país, me disse que de volta ao Brasil ele prometeu a si mesmo que jamais trabalharia novamente com um coro que não tivesse como ferramenta fundamental o solfejo, pois não teria mais a paciência devida para ensinar música de ouvido o tempo todo, e não conseguiria realizar o repertório que teria vontade porque jamais o coro conseguiria sem saber solfejar. “O resultado é outro a luz do solfejo!” Disse ele. Hoje ele aquece seu coro lendo corais de Bach a primeira vista, e todos se convenceram de que realmente o resultado é bem melhor lendo as partituras do que na escuridão do analfabetismo musical.


Marcio Buzatto

Postado por João Vianney

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